No movimento da bruxaria moderna os espelhos se tornaram um tanto omitidos, geralmente considerados somente como objetos de especulação, na maioria os negros. Neste pequeno artigo espero cobrir as muitas virtudes do espelho e seus usos nas artes de bruxaria, de forma que outros possam novamente perceber seu potencial como objetos mágicos por excelência.
A chave da virtude do espelho é o reflexo, mas de uma natureza muito além da vaidade e do narcisismo, sendo esta última palavra derivada do mito de Narciso, que caiu tolamente na atração mágica do reflexo da água. O reflexo “captura” algo daquilo que se reflete, o que é a base da noção antiga de que espelhos “capturam a alma”. Porém, além de capturar ou receber, sua virtude também reflete ou projeta externamente; este é o princípio oculto trabalhado nos atos de magia de espelhos.
Os primeiros espelhos da terra, tais como lagos e lagoas, ou “Espelhos de Diana” (Frazer, 1993), são ainda usados nas antigas práticas mágicas. Estes corpos de água possuem certa qualidade de atração, como Narciso, voltando às águas amnióticas da Mãe, atraindo-nos ao nosso sepulcro de água. Muitos dos corpos de água são rios “famintos” que coletam seu tributo com cada vítima afogada e antigamente os homens faziam sacrifícios à estas águas, para evitar perdas indesejadas. Mais tarde, espelhos eram feitos de cobre polido, o que têm correspondência com a Dama Vênus. Realmente o símbolo planetário de Vênus é um espelho de mão e, como Vênus, a sereia folclórica surge da espuma segurando seu espelho e pente. O pente representa os órgãos sexuais femininos, e intrigantemente, a palavra grega “kteis” e a latina “pectin” significam simultaneamente pente e vulva.
Do espelho de Vênus o mundo das formas é nascido, revelando o espelho como um objeto mágico que traz as coisas ao nosso mundo. Reciprocamente, ele pega coisas de fora do mundo. Em conseqüência, dentro deste espelho-nume, o corpo simbólico da Deusa, encontramos o início e o fim da criação; olhar para dentro dele é ver e saber tudo o que Ela viu no amanhecer dos tempos propriamente; é a revelação. Como a revelação é a verdade, pois ela não pode mentir, o espelho reflete as coisas como elas de fato são, e através disto é possível conhecer verdadeiramente a si próprio, tornando-se um espelho que reflete a Luz Interna.
Espelhos de vidro, como a água, são claros e reflexivos. O folclore revela o vidro tanto mágico quanto pertencente ao “Outro Mundo” e, conseqüentemente, o castelo espiral de Taliesin, e na literatura, o “espelho de vidro” pelo qual Alice entra em outro mundo. O Outro Mundo foi longamente associado ao vidro, à água, à morte e à condição do espírito. Até hoje “vítreo” é usado para denotar o frio sem vida, como por exemplo, o olhar fixo vítreo do cadáver. Igualmente, a quebra de um espelho tem a longa tradição de ser um arauto da morte e do infortúnio, sendo o posterior um presságio específico da morte no mar.
Além dos espelhos dos homens, há o grande espelho nos céus, pois nossa lua, não possuindo luz própria, recebe e reflete os raios solares; o grau de reflexão resulta em suas fases. Conseqüentemente, a luz solar desliza através da face da lua, que preenchendo este tradicional corpo feminino com raios masculinos, evoca noções de fertilidade; deste modo, a crença tradicional de que o período da lua cheia represente um período de realizações, a união do óvulo e esperma. Porém, existe outro mito trabalhando aqui, um não tão exposto na volumosa literatura moderna, que é a antiga crença popular apócrifa no aprisionamento de Caim na lua.
Neste mito Caim se torna o “Homem na Lua”, evocando a antiga lenda romani, do cigano forjador que se senta sobre a lua crescente, trabalhando com seu martelo e pinças: Caim teria ensinado para Tubal Caim a arte dos forjadores. Em alguns clãs de bruxos tradicionais, Caim é considerado como um avatar do deus das bruxas, o “portador da luz”. O mito do Homem na Lua significa a luz solar “capturada” na lua, isto é, sua “alma” é encarcerada no corpo da lua (“a javali voraz”). Isto alude à esfera lunar como um espelho capturador de almas, inchando com as almas dos mortos, adicionalmente evocando ao mito poético no qual o Velho Deus invernal manda para o castelo da Rainha para aguardar o renascimento.
Neste ponto vale a pena considerar Losna, um espírito gravado em um antigo espelho etrusco mencionado por Charles Godfrey Leland. Ele relata que ela é “do sol e da lua” - ambos, não somente da lua, e é “peculiarmente associada com o espelho, como um objeto mágico”. Leland observa que os etruscos acreditavam que estes espelhos continham poderes mágicos e de que eram bons defletores de magia maligna, retornando o “olho do mal” a ele mesmo. Ele também relata como estes “bruxos” supõem a isto, quando “um irmão debocha de sua irmã, é sempre obra dela”, e assim, recordando a sedução de Lúcifer à sua irmã, a deusa da lua, Diana (Leland 1899), e a antiga crença irlandesa de que o Homem na Lua é o sol, encarcerado por seduzir sua irmã.
Nesta confluência solar-lunar descobrimos como o espelho se relaciona as forças opostas, pois, como a lua, ele recebe e projeta raios de luz. Além disso, espelhos refletem alturas como profundezas e vice-versa, os dois mundos se tornam reflexos um do outro, e conseqüentemente o antigo axioma oculto. Isto nos conta da relação entre causa e expressão, ou oculto e revelado, por meio do qual o espelho é entendido como um portal “pelo qual algo entra no mundo” (Cochrane 2002). Isto é rememorativo às nuances do “Espelho de Vênus” e é o princípio trabalhado quando se “Atrai a Lua Para Baixo”.
Dentro da fórmula operativa de se “Atrair a Lua Para Baixo”, encontramos uma seqüência comum conectando o rito moonraker[1] de Cecil Williamson, e com o houzel[2] de Robert Cochrane (Heselton, 1997). Ambos captam o luar em uma superfície refletiva para capturar sua virtude ou alma, e deste modo assegurar os poderes da Musa ao lado dos de Caim. O poder é literalmente “trazido à Terra”, trabalhando o mito da deusa caída, que desce para se acasalar com o Senhor do Mundo, dando à luz a Criança Mágica. Em termos gnósticos, ela é Sophia que, como Diana, cria, revela, e desce à Terra como “prostituta” e é restaurada.
Mas para qual finalidade a lua é atraída e a água carregada? No rito moonraker é a pura magia operativa pela qual a lua é atraída em um espelho de cabo deitado sobre uma bacia de cobre cheia da urina do cliente e posta para boiar em uma piscina ou lagoa, usando o moonraker para enviar o desejo para a bacia. No houzel estamos olhando para algo de uma natureza mística. Primeiramente, o houzel é um sacramento, o sol e a luz da lua captados em uma taça como uma “substituição” moderna ao intercurso sexual, através da qual os velhos ritos de prostituição nos templos foram transportados para a bússola das bruxas. Isto lembra a união do Rei Vermelho e Rainha Branca no banho Real, a operação alquímica de “conjunção” associado ao cobre venéreo[3].
Ao usarmos espelho venéreo para atrair a lua cheia e o sol enlaçado na água, estamos trabalhando o princípio alquímico do casamento incestuoso que narra a morte e o renascimento. O Rei Vermelho (Sol) entra nas águas do banho, que são identificadas com as partes sexuais da Rainha Branca (Luna), somente para morrer. Isto relaciona a água como dissolução e morte. Subseqüentemente, o Rei Vermelho renasce de Luna, trabalhando o princípio da água como fluido amniótico, que é o Filho Chifrudo nascido de seu casamento sagrado. Paradoxalmente, a Criança Mágica é o Rei vermelho propriamente, isto é, ele copula com a Rainha Branca que dá a vida a ele através do nascimento.
Isto nos recorda acerca dos mitos da união incestuosa do sol e da lua. De acordo com algumas filosofias ocultas, a lua é considerada como desdobrada em três, consistindo em uma mãe, um homem adulto e uma criança, então o destino desta criança é ser cônjuge de sua mãe. Tal tríade lunar alude aos Gêmeos Divinos que lutam pela honra de sua mãe e nos conta como o Fogo, a criação da Noite, se une àquilo que lhe dá a luz. Aplicando esta “filosofia” ao houzel, entendemos que ambos, a lua e o sol, são atraídos para a água resultando em um ato de sexo e morte árida. Isto é ritualmente realizado pelo punhal sendo colocando dentro da taça, ou seja, o falo que entra na vulva, e o punhal que entra no rei sacrificado. As águas então se tornam a “Aqua Vitae”, e são administradas ao coven para trazer a transformação e a evolução do espírito, conforme a natureza dos mistérios femininos, isto é vida-amor-morte-sabedoria como encarnados pelo Caldeirão-Taça.
Pondo estes ritos de lado, vale a pena considerar que reflexão significa refletir (N.T.: Muse) ou meditar (N.T.: meditate) sobre algo; sendo as Musas (N.T.: seres que inspiram, Muses) lunares e a meditação, que se deriva do latim “meditare”, refletir. (Heselton, 1997). É em tais estados pensativos que a natureza é lida e influenciada, que são aspectos passivos/receptivos e ativos/projetivos do espelho. Conseqüentemente, o espelho é geralmente visto como simbólico do “Terceiro Olho” que tudo vê e que soluciona toda dualidade, o olho projetor que é a base da fascinação. Isto é também associado ao bruxo-mestre asteca Tezcatlipoca, cujo título principal significa espelho “esfumaçado” ou “ígneo”. É dentro de seu espelho negro de obsidiana que ele lança seu olho sobre toda a criação (Spence).
Robert Cochrane refere a este “olho” como um dos dois espelhos que conhece, “um a Senhora segura por um velho pedaço de madeira, e o outro está entre os meus olhos”, sendo que este último fala “das Marés que ainda estão por vir” (2002). Robert Graves, ao descrever a Deusa, também menciona este “espelho entre os olhos”... “e no meio de sua fronte havia um pequeno círculo claro, como um espelho, ou bastante semelhante à lua pela luz que lançava; e era suspenso por serpentes em ambos os lados que pareciam se erguer dos sulcos da Terra...” (1948). Porém, nas antigas crenças mexicanas era Tezcatlipoca, o bruxo-mestre noturno que assombrava as encruzilhadas que vestia o símbolo da noite em sua testa, reinando tanto sobre a noite quanto sobre a lua. Esta associação entre “a Visão” e o espelho é adicionalmente evidenciada na prática tradicional de “scrying” através da luz enfraquecida da lua cheia.
De todos os “espelhos” usados como speculums, é de relevância particular aqui uma prática recontada por Doreen Valiente, na qual um caldeirão é cheio com a água e uma moeda de prata é colocada dentro dele, como um foco para induzir habilidades mânticas (Valiente 1978). Isto ecoa com a velha prática onde uma pessoa permanece voltada de costas para a lua, observando seu reflexo enquanto esta se movia através da superfície tranqüila de uma lagoa. Adicionalmente, no tempo das honras às práticas de scrying, antes de olhar no espelho, a bruxa permaneceria com suas costas para a lua e mostraria seu espelho a ela.
Além de procurar resposta neles, as bruxas usavam espelhos para conjurar espíritos e familiares, para os quais pedidos eram feitos, então eles se tornavam uma entrada para o Outro Mundo. A crença popular é que espíritos de mortos podem ser vistos dentro de espelhos, deste modo, explica o costume supersticioso de cobri-los no momento da morte (Opie e Tatum, 1989). A chave para a associação entre espelhos, o Outro Mundo, a lua e os espíritos ancestrais podem ser encontrados na luz da lua minguante. Sua fraca luminosidade não só encontra a correlação com o tom do leite materno, mas também com o tom pálido do cadáver, sendo estes a luz e as faces pálidas da Deusa.
O espelho também costumava chamar o Diabo, e conseqüentemente havia aquela antiga proibição feita às jovens donzelas que evitassem perder muito tempo olhando para os seus próprios reflexos, “para que o Diabo não apareça” (ibid). O “Diabo no espelho” é rememorativo ao “Caim na lua”. O Velho Bode certamente apareceria através do instrumento de sua amada, seja de água ou vidro, pois é através do “espelho” da Senhora da Natureza que o Senhor do Mundo e toda a sua criação é nascida (conseqüentemente exibido como o “espelho do desejo” do Homem na Lua, que pertencia à Cecil Williamson, ex-proprietário do museu de bruxaria em Boscastle, Cornwall).
Outra prática tradicional de bruxas é a projeção do “fetch” (o duplo espiritual da bruxa) no espelho, ou reino semi-oculto da lua, para buscar respostas e poderes, embora lagos e fontes sejam igualmente empregados. Um método de projetar o fetch que trabalha no princípio de externalização é vagarosamente transferir a consciência para o reflexo até que se possa re-posicionar na “imagem do espelho”, que é o companheiro de caminhada fetch, fantasmagórico ou duplo espiritual, ou “doppelganger”, isto é, o espírito humano “que assombra”. Isto se relaciona com a antiga crença de que reflexos são os espíritos internos das pessoas que se refletem. Não ver nenhum reflexo pressagia a morte imanente da alma que já partiu, isto é, o corpo literalmente “desistiu para o fantasma” (lembram da lenda de que Vampiros não têm reflexo?). É seguro que enquanto externalizado, ou “pego” no speculum, o corpo astral pode ser atacado e os danos transferidos para o hospedeiro corpóreo.
Em meio a muitas outras facetas da “reflexão”, está a forma que “retrocede as coisas nelas mesmas”. Duas aplicações desta doutrina são familiares à maioria dos ocultistas - a espelho que deflete e a caixa com tampa de espelho. Os espelhos também concedem benefícios, conseqüentemente os muitos presentes que surgiram dos lagos, inclusive Excalibur (sendo a Senhora do Lago evocativa à sereia venérea), do povo das fadas e dos grimórios. Estes são presentes de poder, sustentação e sabedoria do caldeirão da Dama do mundo subterrâneo. Este é o espelho como um útero, ou entrada mágica, e ainda assim locais também podem cumprir esta função, e Graves (1948) e Cochrane (2002) notaram como o panorama do solo de Stonehenge e Glastonbury são semelhantes à imagem de um espelho de mão.
Finalmente, vale a pena considerar que espelhos refletem a luz da lua e a luz do sol. Duas práticas que saltam à mente são as recontadas por Paul Huson e Cecil Williamson. Este último observa que o espelho pode ser usado para refletir a luz solar sobre uma pessoa, que ele considerava ser um método de maldição, comparando a dança de luz para um espírito. Este é o povo e raça de Diana (as fadas), que são raios da lua (Leland, 1899). Huson enfoca o uso do espelho para iluminar o fogo do Sabbat, que está “atraindo o sol para baixo” (1970) e infundindo-o com a virtude solar, e deste modo, evocando o Fogo que queima através de toda a criação e então, unindo todos os seres vivos.
Embora eu só tenha falado sobre os muitos mistérios do espelho neste artigo, espero ter inspirado a outros para que explorem a vasta sabedoria deste objeto tão freqüentemente negligenciado, e a experimentarem algumas de suas muitas aplicações. Também espero que através de tal reflexão fixa e experimentação ativa, alguns dos mais profundos mistérios e práticas da bruxaria possam ser revelados, pois qual é o uso de qualquer coisa que não sirva para fazer progredir no caminho da sabedoria?
Bibliografia e referências: “The Golden Bough: A Study in Magic & Religion”, Sir James Frazer (Wordsworth Edition, 1993), “Aradia: The Gospel of the Witches”, Charles Godfrey Leland (1899, Phoenix Publishing Inc. USA, edition 1999), “Etruscan Roman Remains”, Charles Godfrey Leland (1842, Phoenix Publishing Inc USA edition, 1999), “The Robert Cochrane Letters: An Insight into Modern Traditional Witchcraft”, Robert Cochrane with Evan John Jones. Editado e introduzido por Michael Howard (Capall Bann, 2002), “Mirrors of Magic: Evoking the Spirit of the Dewponds”, Philip Heselton (Capall Bann, 1997), “The Magic & Mysteries of Mexico”, Lewis Spence (Rider & Co n.d.), “The White Goddess”, Robert Graves (Faber & Faber, 1948), “Witchcraft for Tomorrow”, Doreen Valiente (Robert Hale, 1978), “A Dictionary of Superstitions”, Editado por Iona Opie e Moira Tatem (Oxford University Press, 1989), “Mastering Witchcraft: A Practical Guide for Witches, Warlocks and Covens”, Paul Huson (Rupert Hart-Davies, 1970) e “Oxford Dictionary of Folklore”, J. Simpson and S. Roud (Oxford University Press, 2000).
by Martin Duffy
Notas:
[1] Nota da Tradução: O termo “Moonraker” é proveniente de uma antiga lenda folclórica de Wiltshire, onde dois homens locais tomam parte em um contrabando de conhaque e escondem o barril perto de uma lagoa. Quando voltaram para recuperar o contrabando, foram pegos em flagrante, mas eles alegam naquele momento que estão usando seus ancinhos tentando coletar o queijo da lagoa, o reflexo da lua. O fiscal, divertido pelas alegações daqueles rústicos aparentemente sinceros, deixou o assunto de lado.
[2] Houzel, (inglês arcaico) – O ato de administrar ou receber a Eucaristia.
(3] ‘Venéreo’, relativo à Vênus.
[Artigo publicado na revista “O Caldeirão”, edição brasileira.]
A chave da virtude do espelho é o reflexo, mas de uma natureza muito além da vaidade e do narcisismo, sendo esta última palavra derivada do mito de Narciso, que caiu tolamente na atração mágica do reflexo da água. O reflexo “captura” algo daquilo que se reflete, o que é a base da noção antiga de que espelhos “capturam a alma”. Porém, além de capturar ou receber, sua virtude também reflete ou projeta externamente; este é o princípio oculto trabalhado nos atos de magia de espelhos.
Os primeiros espelhos da terra, tais como lagos e lagoas, ou “Espelhos de Diana” (Frazer, 1993), são ainda usados nas antigas práticas mágicas. Estes corpos de água possuem certa qualidade de atração, como Narciso, voltando às águas amnióticas da Mãe, atraindo-nos ao nosso sepulcro de água. Muitos dos corpos de água são rios “famintos” que coletam seu tributo com cada vítima afogada e antigamente os homens faziam sacrifícios à estas águas, para evitar perdas indesejadas. Mais tarde, espelhos eram feitos de cobre polido, o que têm correspondência com a Dama Vênus. Realmente o símbolo planetário de Vênus é um espelho de mão e, como Vênus, a sereia folclórica surge da espuma segurando seu espelho e pente. O pente representa os órgãos sexuais femininos, e intrigantemente, a palavra grega “kteis” e a latina “pectin” significam simultaneamente pente e vulva.
Do espelho de Vênus o mundo das formas é nascido, revelando o espelho como um objeto mágico que traz as coisas ao nosso mundo. Reciprocamente, ele pega coisas de fora do mundo. Em conseqüência, dentro deste espelho-nume, o corpo simbólico da Deusa, encontramos o início e o fim da criação; olhar para dentro dele é ver e saber tudo o que Ela viu no amanhecer dos tempos propriamente; é a revelação. Como a revelação é a verdade, pois ela não pode mentir, o espelho reflete as coisas como elas de fato são, e através disto é possível conhecer verdadeiramente a si próprio, tornando-se um espelho que reflete a Luz Interna.
Espelhos de vidro, como a água, são claros e reflexivos. O folclore revela o vidro tanto mágico quanto pertencente ao “Outro Mundo” e, conseqüentemente, o castelo espiral de Taliesin, e na literatura, o “espelho de vidro” pelo qual Alice entra em outro mundo. O Outro Mundo foi longamente associado ao vidro, à água, à morte e à condição do espírito. Até hoje “vítreo” é usado para denotar o frio sem vida, como por exemplo, o olhar fixo vítreo do cadáver. Igualmente, a quebra de um espelho tem a longa tradição de ser um arauto da morte e do infortúnio, sendo o posterior um presságio específico da morte no mar.
Além dos espelhos dos homens, há o grande espelho nos céus, pois nossa lua, não possuindo luz própria, recebe e reflete os raios solares; o grau de reflexão resulta em suas fases. Conseqüentemente, a luz solar desliza através da face da lua, que preenchendo este tradicional corpo feminino com raios masculinos, evoca noções de fertilidade; deste modo, a crença tradicional de que o período da lua cheia represente um período de realizações, a união do óvulo e esperma. Porém, existe outro mito trabalhando aqui, um não tão exposto na volumosa literatura moderna, que é a antiga crença popular apócrifa no aprisionamento de Caim na lua.
Neste mito Caim se torna o “Homem na Lua”, evocando a antiga lenda romani, do cigano forjador que se senta sobre a lua crescente, trabalhando com seu martelo e pinças: Caim teria ensinado para Tubal Caim a arte dos forjadores. Em alguns clãs de bruxos tradicionais, Caim é considerado como um avatar do deus das bruxas, o “portador da luz”. O mito do Homem na Lua significa a luz solar “capturada” na lua, isto é, sua “alma” é encarcerada no corpo da lua (“a javali voraz”). Isto alude à esfera lunar como um espelho capturador de almas, inchando com as almas dos mortos, adicionalmente evocando ao mito poético no qual o Velho Deus invernal manda para o castelo da Rainha para aguardar o renascimento.
Neste ponto vale a pena considerar Losna, um espírito gravado em um antigo espelho etrusco mencionado por Charles Godfrey Leland. Ele relata que ela é “do sol e da lua” - ambos, não somente da lua, e é “peculiarmente associada com o espelho, como um objeto mágico”. Leland observa que os etruscos acreditavam que estes espelhos continham poderes mágicos e de que eram bons defletores de magia maligna, retornando o “olho do mal” a ele mesmo. Ele também relata como estes “bruxos” supõem a isto, quando “um irmão debocha de sua irmã, é sempre obra dela”, e assim, recordando a sedução de Lúcifer à sua irmã, a deusa da lua, Diana (Leland 1899), e a antiga crença irlandesa de que o Homem na Lua é o sol, encarcerado por seduzir sua irmã.
Nesta confluência solar-lunar descobrimos como o espelho se relaciona as forças opostas, pois, como a lua, ele recebe e projeta raios de luz. Além disso, espelhos refletem alturas como profundezas e vice-versa, os dois mundos se tornam reflexos um do outro, e conseqüentemente o antigo axioma oculto. Isto nos conta da relação entre causa e expressão, ou oculto e revelado, por meio do qual o espelho é entendido como um portal “pelo qual algo entra no mundo” (Cochrane 2002). Isto é rememorativo às nuances do “Espelho de Vênus” e é o princípio trabalhado quando se “Atrai a Lua Para Baixo”.
Dentro da fórmula operativa de se “Atrair a Lua Para Baixo”, encontramos uma seqüência comum conectando o rito moonraker[1] de Cecil Williamson, e com o houzel[2] de Robert Cochrane (Heselton, 1997). Ambos captam o luar em uma superfície refletiva para capturar sua virtude ou alma, e deste modo assegurar os poderes da Musa ao lado dos de Caim. O poder é literalmente “trazido à Terra”, trabalhando o mito da deusa caída, que desce para se acasalar com o Senhor do Mundo, dando à luz a Criança Mágica. Em termos gnósticos, ela é Sophia que, como Diana, cria, revela, e desce à Terra como “prostituta” e é restaurada.
Mas para qual finalidade a lua é atraída e a água carregada? No rito moonraker é a pura magia operativa pela qual a lua é atraída em um espelho de cabo deitado sobre uma bacia de cobre cheia da urina do cliente e posta para boiar em uma piscina ou lagoa, usando o moonraker para enviar o desejo para a bacia. No houzel estamos olhando para algo de uma natureza mística. Primeiramente, o houzel é um sacramento, o sol e a luz da lua captados em uma taça como uma “substituição” moderna ao intercurso sexual, através da qual os velhos ritos de prostituição nos templos foram transportados para a bússola das bruxas. Isto lembra a união do Rei Vermelho e Rainha Branca no banho Real, a operação alquímica de “conjunção” associado ao cobre venéreo[3].
Ao usarmos espelho venéreo para atrair a lua cheia e o sol enlaçado na água, estamos trabalhando o princípio alquímico do casamento incestuoso que narra a morte e o renascimento. O Rei Vermelho (Sol) entra nas águas do banho, que são identificadas com as partes sexuais da Rainha Branca (Luna), somente para morrer. Isto relaciona a água como dissolução e morte. Subseqüentemente, o Rei Vermelho renasce de Luna, trabalhando o princípio da água como fluido amniótico, que é o Filho Chifrudo nascido de seu casamento sagrado. Paradoxalmente, a Criança Mágica é o Rei vermelho propriamente, isto é, ele copula com a Rainha Branca que dá a vida a ele através do nascimento.
Isto nos recorda acerca dos mitos da união incestuosa do sol e da lua. De acordo com algumas filosofias ocultas, a lua é considerada como desdobrada em três, consistindo em uma mãe, um homem adulto e uma criança, então o destino desta criança é ser cônjuge de sua mãe. Tal tríade lunar alude aos Gêmeos Divinos que lutam pela honra de sua mãe e nos conta como o Fogo, a criação da Noite, se une àquilo que lhe dá a luz. Aplicando esta “filosofia” ao houzel, entendemos que ambos, a lua e o sol, são atraídos para a água resultando em um ato de sexo e morte árida. Isto é ritualmente realizado pelo punhal sendo colocando dentro da taça, ou seja, o falo que entra na vulva, e o punhal que entra no rei sacrificado. As águas então se tornam a “Aqua Vitae”, e são administradas ao coven para trazer a transformação e a evolução do espírito, conforme a natureza dos mistérios femininos, isto é vida-amor-morte-sabedoria como encarnados pelo Caldeirão-Taça.
Pondo estes ritos de lado, vale a pena considerar que reflexão significa refletir (N.T.: Muse) ou meditar (N.T.: meditate) sobre algo; sendo as Musas (N.T.: seres que inspiram, Muses) lunares e a meditação, que se deriva do latim “meditare”, refletir. (Heselton, 1997). É em tais estados pensativos que a natureza é lida e influenciada, que são aspectos passivos/receptivos e ativos/projetivos do espelho. Conseqüentemente, o espelho é geralmente visto como simbólico do “Terceiro Olho” que tudo vê e que soluciona toda dualidade, o olho projetor que é a base da fascinação. Isto é também associado ao bruxo-mestre asteca Tezcatlipoca, cujo título principal significa espelho “esfumaçado” ou “ígneo”. É dentro de seu espelho negro de obsidiana que ele lança seu olho sobre toda a criação (Spence).
Robert Cochrane refere a este “olho” como um dos dois espelhos que conhece, “um a Senhora segura por um velho pedaço de madeira, e o outro está entre os meus olhos”, sendo que este último fala “das Marés que ainda estão por vir” (2002). Robert Graves, ao descrever a Deusa, também menciona este “espelho entre os olhos”... “e no meio de sua fronte havia um pequeno círculo claro, como um espelho, ou bastante semelhante à lua pela luz que lançava; e era suspenso por serpentes em ambos os lados que pareciam se erguer dos sulcos da Terra...” (1948). Porém, nas antigas crenças mexicanas era Tezcatlipoca, o bruxo-mestre noturno que assombrava as encruzilhadas que vestia o símbolo da noite em sua testa, reinando tanto sobre a noite quanto sobre a lua. Esta associação entre “a Visão” e o espelho é adicionalmente evidenciada na prática tradicional de “scrying” através da luz enfraquecida da lua cheia.
De todos os “espelhos” usados como speculums, é de relevância particular aqui uma prática recontada por Doreen Valiente, na qual um caldeirão é cheio com a água e uma moeda de prata é colocada dentro dele, como um foco para induzir habilidades mânticas (Valiente 1978). Isto ecoa com a velha prática onde uma pessoa permanece voltada de costas para a lua, observando seu reflexo enquanto esta se movia através da superfície tranqüila de uma lagoa. Adicionalmente, no tempo das honras às práticas de scrying, antes de olhar no espelho, a bruxa permaneceria com suas costas para a lua e mostraria seu espelho a ela.
Além de procurar resposta neles, as bruxas usavam espelhos para conjurar espíritos e familiares, para os quais pedidos eram feitos, então eles se tornavam uma entrada para o Outro Mundo. A crença popular é que espíritos de mortos podem ser vistos dentro de espelhos, deste modo, explica o costume supersticioso de cobri-los no momento da morte (Opie e Tatum, 1989). A chave para a associação entre espelhos, o Outro Mundo, a lua e os espíritos ancestrais podem ser encontrados na luz da lua minguante. Sua fraca luminosidade não só encontra a correlação com o tom do leite materno, mas também com o tom pálido do cadáver, sendo estes a luz e as faces pálidas da Deusa.
O espelho também costumava chamar o Diabo, e conseqüentemente havia aquela antiga proibição feita às jovens donzelas que evitassem perder muito tempo olhando para os seus próprios reflexos, “para que o Diabo não apareça” (ibid). O “Diabo no espelho” é rememorativo ao “Caim na lua”. O Velho Bode certamente apareceria através do instrumento de sua amada, seja de água ou vidro, pois é através do “espelho” da Senhora da Natureza que o Senhor do Mundo e toda a sua criação é nascida (conseqüentemente exibido como o “espelho do desejo” do Homem na Lua, que pertencia à Cecil Williamson, ex-proprietário do museu de bruxaria em Boscastle, Cornwall).
Outra prática tradicional de bruxas é a projeção do “fetch” (o duplo espiritual da bruxa) no espelho, ou reino semi-oculto da lua, para buscar respostas e poderes, embora lagos e fontes sejam igualmente empregados. Um método de projetar o fetch que trabalha no princípio de externalização é vagarosamente transferir a consciência para o reflexo até que se possa re-posicionar na “imagem do espelho”, que é o companheiro de caminhada fetch, fantasmagórico ou duplo espiritual, ou “doppelganger”, isto é, o espírito humano “que assombra”. Isto se relaciona com a antiga crença de que reflexos são os espíritos internos das pessoas que se refletem. Não ver nenhum reflexo pressagia a morte imanente da alma que já partiu, isto é, o corpo literalmente “desistiu para o fantasma” (lembram da lenda de que Vampiros não têm reflexo?). É seguro que enquanto externalizado, ou “pego” no speculum, o corpo astral pode ser atacado e os danos transferidos para o hospedeiro corpóreo.
Em meio a muitas outras facetas da “reflexão”, está a forma que “retrocede as coisas nelas mesmas”. Duas aplicações desta doutrina são familiares à maioria dos ocultistas - a espelho que deflete e a caixa com tampa de espelho. Os espelhos também concedem benefícios, conseqüentemente os muitos presentes que surgiram dos lagos, inclusive Excalibur (sendo a Senhora do Lago evocativa à sereia venérea), do povo das fadas e dos grimórios. Estes são presentes de poder, sustentação e sabedoria do caldeirão da Dama do mundo subterrâneo. Este é o espelho como um útero, ou entrada mágica, e ainda assim locais também podem cumprir esta função, e Graves (1948) e Cochrane (2002) notaram como o panorama do solo de Stonehenge e Glastonbury são semelhantes à imagem de um espelho de mão.
Finalmente, vale a pena considerar que espelhos refletem a luz da lua e a luz do sol. Duas práticas que saltam à mente são as recontadas por Paul Huson e Cecil Williamson. Este último observa que o espelho pode ser usado para refletir a luz solar sobre uma pessoa, que ele considerava ser um método de maldição, comparando a dança de luz para um espírito. Este é o povo e raça de Diana (as fadas), que são raios da lua (Leland, 1899). Huson enfoca o uso do espelho para iluminar o fogo do Sabbat, que está “atraindo o sol para baixo” (1970) e infundindo-o com a virtude solar, e deste modo, evocando o Fogo que queima através de toda a criação e então, unindo todos os seres vivos.
Embora eu só tenha falado sobre os muitos mistérios do espelho neste artigo, espero ter inspirado a outros para que explorem a vasta sabedoria deste objeto tão freqüentemente negligenciado, e a experimentarem algumas de suas muitas aplicações. Também espero que através de tal reflexão fixa e experimentação ativa, alguns dos mais profundos mistérios e práticas da bruxaria possam ser revelados, pois qual é o uso de qualquer coisa que não sirva para fazer progredir no caminho da sabedoria?
Bibliografia e referências: “The Golden Bough: A Study in Magic & Religion”, Sir James Frazer (Wordsworth Edition, 1993), “Aradia: The Gospel of the Witches”, Charles Godfrey Leland (1899, Phoenix Publishing Inc. USA, edition 1999), “Etruscan Roman Remains”, Charles Godfrey Leland (1842, Phoenix Publishing Inc USA edition, 1999), “The Robert Cochrane Letters: An Insight into Modern Traditional Witchcraft”, Robert Cochrane with Evan John Jones. Editado e introduzido por Michael Howard (Capall Bann, 2002), “Mirrors of Magic: Evoking the Spirit of the Dewponds”, Philip Heselton (Capall Bann, 1997), “The Magic & Mysteries of Mexico”, Lewis Spence (Rider & Co n.d.), “The White Goddess”, Robert Graves (Faber & Faber, 1948), “Witchcraft for Tomorrow”, Doreen Valiente (Robert Hale, 1978), “A Dictionary of Superstitions”, Editado por Iona Opie e Moira Tatem (Oxford University Press, 1989), “Mastering Witchcraft: A Practical Guide for Witches, Warlocks and Covens”, Paul Huson (Rupert Hart-Davies, 1970) e “Oxford Dictionary of Folklore”, J. Simpson and S. Roud (Oxford University Press, 2000).
by Martin Duffy
Notas:
[1] Nota da Tradução: O termo “Moonraker” é proveniente de uma antiga lenda folclórica de Wiltshire, onde dois homens locais tomam parte em um contrabando de conhaque e escondem o barril perto de uma lagoa. Quando voltaram para recuperar o contrabando, foram pegos em flagrante, mas eles alegam naquele momento que estão usando seus ancinhos tentando coletar o queijo da lagoa, o reflexo da lua. O fiscal, divertido pelas alegações daqueles rústicos aparentemente sinceros, deixou o assunto de lado.
[2] Houzel, (inglês arcaico) – O ato de administrar ou receber a Eucaristia.
(3] ‘Venéreo’, relativo à Vênus.
[Artigo publicado na revista “O Caldeirão”, edição brasileira.]